A democracia é o melhor sistema político comparado aos outros sistemas políticos conhecidos, como a oligarquia, a aristocracia, a monarquia, etc. Mesmo o socialismo, a partir da revolução russa de 1917, resultou em totalitarismo e reafirmou a virtude da democracia, mas a chamada democracia socialista não se firmou em lugar nenhum. Por quê?
Quais as lacunas da democracia? E de que democracia estamos tratando?
Apontar lacunas na democracia não significa descartá-la e muito menos defender um outro sistema político, não democrático. Entretanto, é preciso repensar a democracia liberal, que vem sendo rompida por populistas de direita (Trump, Bolsonaro, etc) e por populistas de esquerda (Hugo Chavez, Lula, etc), conforme análises de Levitstky e Ziblatt (2018) e Castells (2018).
A democracia liberal foi gerada em contexto nacional, ou nacionalizador, e os aparelhos estatais modernos representaram, por um lado, a expansão da democracia local, oriunda na Grécia antiga e, por outro lado, a restrição geográfica da democracia no contexto das lutas imperialistas intercontinentais.
Atualmente as democracias nacionais são exportadoras de externalidades sociais e ambientais, enquanto priorizam a geração interna de empregos e acesso a recursos naturais não-renováveis sobre os renováveis. As democracias liberais surgiram pressupondo que a natureza é uma coleção infinita de matérias-primas e um sumidouro de dejetos. Desconhecia-se, e ainda muito se despreza, a noção de "ecossistema".
Além dessa lacuna biofísica/ecológica e socioambiental, a democracia liberal tem outra grande lacuna, que é de base cultural-ética-metafísica.
Esta segunda lacuna é paradoxal, na medida em que assistimos a uma difusão extraordinária de informações via satélites e tecnologia digital. Na chamada "era do conhecimento" há emergência de uma certa idolatria da ignorância, uma regressão da capacidade de discernimento e uma indistinção entre o tradicional e o moderno, o senso comum e o cientificismo (ciência dogmática, redutora-disjuntora). A insegurança ontológica que acompanha a rapidez da difusão de informações tem proporcionado a emergência de seitas e grupos dogmáticos, que estão na base eleitoral dos populistas. O fenômeno das fake news faz sentido nesse contexto.
O potencial de ampliação cultural dos povos por meio da internet é imenso, mas para isso a própria democracia liberal precisa elevar-se culturalmente. Já está bem claro que a “representatividade” dos eleitos é cada dia mais contestável e contestada por meio das chamadas “redes sociais”. Ou a democracia liberal se abre a processos de participação e interação direta dos cidadãos, com mais transparência virtual tanto de órgãos públicos quanto de partidos políticos e mandatos parlamentares, ou será superada historicamente por governos autoritários, conforme análises de Levitsky e Ziblatt no livro “Como as democracias morrem” (2018) e de Castells no livro “Ruptura: a crise da democracia liberal” (2018).
Mas a cultura política não se resume a mais e melhores canais de participação e interação nem a formas de prestação de contas e transparência. Há uma crise civilizatória mais profunda. Uma crise de valores não monetários, mas éticos, psíquicos, hiperfísicos e metafísicos, espirituais, para além do moralismo e da ética deontológica. Há uma crise da emergência de uma “Cidadania Planetária” (2005), tal como a conceberam Ikeda e Henderson. O sociólogo brasileiro Guerreiro Ramos, em The New Science of Organizations (1981), já concebia uma sociedade multicêntrica, em que a razão substantiva (ética) seria o contexto necessário da racionalidade instrumental, e na qual o sistema social econômico seria um entre outros, como o isonômico e o fenonômico, mas não mais o dominante. As políticas públicas seriam fundamentalmente redistributivas, incentivando o cooperativismo (sistema isonômico) e a criatividade (sistema fenonômico, via startups, organizações da sociedade civil, etc). As formas de propriedade estatal, particular, cooperativa e mercadológica precisariam priorizar o mútuo equilíbrio, sem predomínio de qualquer uma delas.
Se temos, portanto, de assumir a expansão intercontinental e planetária de uma federação de democracias liberais e sociais, ecologicamente orientadas, temos, por outro lado, o desafio de assumir a crise de paradigmas científicos e a busca do autoconhecimento (via interconexão de pensamento, sentimento, intuição e sensação), para além do mero racionalismo moderno, conforme defendia C.G. Jung. Ele, como poucos, soube perscrutar a crise da civilização moderna ocidental. Em seu livro “Civilização em Transição” (2007), lamentava em texto de 1928 que após quase dois mil anos de história cristã, em vez da paz presenciava-se a guerra entre nações cristãs, enquanto governos seguiam o princípio “Si vis pacem, para bellum” (“Se queres a paz, prepara-te para a guerra”). Ora, em vez disso, se queremos a paz, precisamos superar o espírito bélico e semear a transmutação psicológica, ética, metafísica. Nesse sentido o próprio paradigma científico dominante se apresenta como obstáculo, com seu senso comum cartesiano-positivista a serviço da compartimentação e da comercialização oligopólica dos conhecimentos científicos. A propósito, Nietzsche escreveu, em algum lugar, que a grande política é epistemológica.
Referências
CASTELLS, M. Ruptura: a crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
GUERREIRO RAMOS, A. The new science of organizations: a reconceptualization of the wealth of nations. Toronto, Buffalo, London. University of Toronto Press, 1981.
IKEDA, D. ; HENDERSON, H. Cidadania planetária. São Paulo: editora Seikyo, 2005.
JUNG, C.G. Civilização em transição. Petrópolis: Vozes, 2007.
LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.